A Liberdade é Azul

Direção —

Gêneros —

Ano — 1993

O primeiro filme da trilogia imaterial e filosófica de Kieślowski, A Liberdade é Azul (1993), é um ponto de fusão melodramático onde a tristeza se choca com o contentamento mundano em busca de uma tão sonhada liberdade.

Pensar na Trilogia das Cores (1993-1994) é também pensar em uma Europa dividida e em busca de uma nova identidade nacional pós-moderna. Krzysztof Kieślowski, até a queda do Muro de Berlim, era um diretor de documentários e ficções moralistas, mas encontrou no remanejo do continente um momento prolífico para suas obras éticas. Com o fim da Guerra Fria, surgiram, então, possibilidades de coproduções entre o Leste e o Oeste. Trilogia das Cores é uma dessas obras, que, além de ditarem um novo diálogo político europeu, representavam também um esforço generalista de busca por uma nova identidade contemporânea. Sendo o primeiro filme da trilogia e da fase mais imaterial e filosófica da carreira de Kieślowski, A Liberdade é Azul (1993) é um ponto de fusão melodramático em que a tristeza choca-se com contentamento mundano em busca da liberdade. 

No filme, Julie (Juliette Binoche) é a esposa de Patrice (Hugues Quester), um renomado maestro e compositor francês. Durante uma viagem de carro, um acidente mata tanto Patrice quanto a filha do casal, de apenas cinco anos. Julie é a única sobrevivente da tragédia e tenta se suicidar logo após a notícia da morte de sua família. No entanto, ela decide encarar a situação, lidar com as perdas e seguir sua vida. Mudando-se de casa e adotando seu antigo nome de solteira, Julie também é encarregada de finalizar uma composição para coro e orquestra que havia sido encomendada ao seu esposo, uma canção pela unificação da Europa. Enquanto se questiona se deve ou não dar continuidade ao trabalho, Julie se depara com a amante de seu marido, ao mesmo tempo em que começa a se relacionar com Olivier (Benoít Régent), um amigo do casal. 

A Trilogia das Cores toma emprestadas as cores da bandeira da França para discutir os três princípios fundadores estabelecidos na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Com isso, espera-se que cada um desses filmes seja fortemente pautado, visualmente, por suas respectivas cores. É verdade que isso ocorre, mas o trabalho de Kieślowski é mais refinado do que meras referências estéticas. Na realidade, a maior presença de azul nesse primeiro filme está na construção de uma atmosfera fria e isolante: observe, por exemplo, como essa cor se projeta sobre o rosto de Julie por meio de reflexos e luzes, sustentando uma perspectiva certamente transcendental, indo além de adereços materializados. Nesse sentido, mesmo com instantes que tentam pregar um certo calor e aconchego, A Liberdade é Azul é quase congelante. 

O filme deixa evidente outra característica fundamental de Kieślowski: suas histórias parecem escorrer em mundos de isolamento espacial. Pensando sobre isso, me lembro de O Decálogo (1988-1989), em que seus contos cristãos se passavam em um universo que não ia além da instituição da União Soviética. A Liberdade é Azul partilha dessa sensação: por mais que Julie deixe sua casa de campo para trás — que era cercada por uma planície —, sua nova fase cosmopolita parece mais sufocante do que, propriamente, libertadora e cheia de oportunidades. Existe uma cena no meio do filme na qual Julie vai até o bordel em que sua vizinha trabalha. Nem mesmo nesse momento de euforia a moça parece assumir qualquer ousadia. Na verdade, parece que tudo ali é falso e até teatralizado — o que talvez seja uma representação da falsa noção de liberdade de Julie. 

Falando sobre essa noção de liberdade, esse é o verdadeiro objetivo utópico do filme. Por mais que a produção, no começo, pareça dar indícios de um foco em tristeza, essa acaba sendo mais um propulsor do que uma trajetória. Julie, durante toda a obra, está atrás de uma suposta liberdade: se ela perdeu tudo o que conhecia, pode também perder sua identidade. Nesse processo, ela toma ações de reafirmação — retomada do seu nome de solteira —, mas também toma atitudes desesperadas: pouco depois da morte do marido e da filha, Julie chama Olivier para sua casa e os dois transam. No entanto, isso acaba sendo mais um ato de mutilação do que de libertação: na cena seguinte ao encontro dos dois, Julie anda raspando sua mão no muro da sua casa, deixando-a toda machucada. Nisso, encontrar uma nova versão não é, necessariamente, maltratar seu eu antigo até que ele morra. 

Felizmente, Julie parece entender isso rapidamente. Conforme o filme avança, a moça transita para um estado em que foca mais em se permitir respirar do que em apagar o passado. Existe uma cena em que Julie visita sua mãe em uma casa de idosos. Nesse momento, o contraste é forte: mesmo presa naquele lugar, a mãe se sente livre, pois encontrou nas imagens fantasmagóricas da televisão uma forma de conhecer o mundo e ser, da sua maneira, libertada do plano material. Durante o filme, Julie parece estar constantemente em busca de uma idealização espiritual que, no caso dela, se concretiza de forma misteriosa, talvez inacessível até para ela mesma. Na cena final, ouvimos a peça que ela escreveu enquanto vemos todas as pessoas cujas vidas foram transformadas por Julie. Sua liberdade, com isso, parece ser mais uma responsabilidade de ser uma heroína do que um estado de paz. 

Todavia, as histórias de Kieślowski só funcionam porque ele imprime sua assinatura na direção: ele nos mostra o que preferiríamos não ver e oculta aquilo que mais desejamos enxergar. Olhe, por exemplo, a cena de abertura, em que vemos claramente um vazamento no carro, mas, na hora do acidente, somos poupados parcialmente do choque. Porém, essa é uma escolha inteligente: o suspense de saber que algo ruim irá acontecer é pior do que um choque de repente. Com isso, Kieślowski tira proveito das consequências dos eventos também: os planos de Julie em luto assumem uma duração alongada, ao mesmo tempo em que não hesita em aproximar a câmera do rosto de Julie, enquanto ela assiste ao velório do marido e da filha por uma televisão portátil. Kieślowski sabe lidar com a dor sem cair em fetichismo, preferindo trabalhar com uma humanização do momento. 

Gostaria de escrever mais sobre A Liberdade é Azul, mas há limitações nesse espaço. Não tive oportunidade de comentar, por exemplo, sobre o esquema de fetichização da exposição dupla na cena do bordel, ou como não existe nenhuma esfera fílmica que condene qualquer atitude das figuras femininas. Encerro, por fim, comentando sobre a piscina, na qual Julie passa diversas cenas nadando. Penso que é nesse espaço quase limiar que Julie encontra sua verdadeira identidade: ela está tão próxima da morte quanto de uma suposta liberdade. Em um deslize, ela pode ser engolida pelo azul da água, ou, ainda, saber domar suas próprias fraquezas. No entanto, apesar de todas as supostas definições de livre que o filme busca atribuir, penso que a liberdade está mais presente na possibilidade de Julie encontrar um novo caminho. Muito mais do que um estado, esse é um processo. 

(Nota: Este texto foi publicado originalmente no site Cinemanorama e, desde setembro de 2025, encontra-se também disponível no site Suborno)

A Liberdade é Azul

Título Original: Trois couleurs: Bleu

Lançamento: 1993

Duração: 100 mins.

Gênero(s):

Classificação: 14

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