Os diálogos falados são uma parte essencial tanto nas fábulas quanto nas animações. Esse costume, que data desde La Fontaine, prega que as falas dos animais são um instrumento útil para investigar questões de cognição e moralidade, bem como entender a divisão entre humanos e animais. No entanto, apesar dessa função de vinculação entre dois mundos, os bichos falantes servem também para revelar aspectos mais lúgubres da natureza do homem, como a violência e a crueldade, desafiando a noção de que a linguagem é uma força inerentemente civilizatória. Em Flow (2024), essa noção é trabalhada, mas sua discussão deixa de lado o pessimismo em prol de uma “humanização” universal.
Flow se passa em um mundo que parece ter alcançado seu fim, marcado unicamente por restos da existência humana. Nele, um gato preto, naturalmente solitário, vê seu lar destruído por uma grande enchente enquanto tenta escapar de uma horda de cães. Em busca de sobrevivência após a inundação, ele enfrenta várias ameaças até encontrar refúgio em um pequeno barco, onde há várias espécies diferentes. Juntos, eles precisam se unir para sobreviver nesse cenário hostil, apesar das diferenças. Nesse veleiro, navegando por paisagens místicas e caóticas, os animais enfrentam os desafios e perigos da adaptação a esse novo mundo pós-apocalíptico.
Flow é um filme “mudo”, contrariando os costumes das animações. Nesse sentido, essa é uma obra que não atribui diálogo falado aos bichos, mas isso não significa que eles não se comuniquem, muito pelo contrário. Penso que o hábito de atribuir falas humanas aos animais parte da ideia de que apenas a comunicação dos homens é válida. Logo, para que esses animais se comuniquem, eles precisam de um idioma humano. Todavia, Flow preza mais pelo sentido final da mensagem do que pela forma dela. Por isso, os bichos do filme não falam um idioma, muito menos uma língua que não compreendemos. Na verdade, eles não se entendem nem um pouco, apenas confiam nas intenções um do outro.
Embora haja essa carência de um meio de comunicação partilhado, Flow demonstra como um interesse comum possibilita a construção de laços por meio das intenções e empatia. No caso, há quatro animais, a princípio, no barco: um gato preto, um cachorro, um pássaro-secretário, uma capivara e um lêmure. No começo, há um estranhamento entre eles, mas logo formam uma família. Com isso, Flow apresenta uma moral simples, mas direta: não importa o quão diferente eles possam ser ou os conflitos que tenham — como quando o pássaro joga para longe uma bola de cristal que pertence ao macaco —, eles ainda cuidam um do outro — por exemplo, quando o gato pula na água para pegar peixes e dividi-los com os outros.
Em conjunto, por mais que os quatro bichos de Flow não falem como os humanos, eles acabam tendo uma certa personificação interna. Digo isso porque eles possuem uma personalidade, que se configura em um ato muito especial: as crises de identidade. Além das diferenças de gosto e comportamento que os cinco bichos têm, existem dois momentos que sugerem um aprofundamento maior. No primeiro, o pássaro, já ferido, voa para longe do barco, até o topo do que parece ser uma construção antiga, onde ele levita e deixa o plano físico para trás. Mais tarde, quando o gato reencontra o lêmure no meio dos outros macacos, tenta interagir com o colega. O lêmure ignora, o gato se retira, mas logo o macaco se vê no espelho quebrado, apresentando uma desconfiguração do personagem. Mesmo sem palavras, esses dois momentos mostram os bichos em uma crise sobre sua própria existência.
No entanto, por mais que Flow não tenha diálogos, isso não significa que ele não seja tão eficaz quanto os outros filmes. É verdade que essa é uma produção bastante visual — toda a história é contada por gestos —, mas isso não faz com que os gestos e movimentos sejam didáticos. Na realidade, sinto que Flow trata de um assunto tão instintivo — sobrevivência e empatia —, de uma maneira tão crua, que isso permite que ele trabalhe a progressão narrativa aliada a qualidade visual. Com isso, quando você se pergunta sobre os humanos ou sobre a grande estátua de gato no começo, fica confuso, mas não se prende tanto a isso porque a jornada do gato é mais interessante. Isso permite que o filme funcione: momentos de tensão são, de fato, aflitivos. Em outras palavras, Flow conta uma história simples da forma mais crua possível, e essa abordagem é eficaz.
Outro grande marco da animação é o visual. Esse trabalho é notável por ser completamente renderizado no Blender, um software gratuito e de código aberto. O resultado me lembra tanto Robô Selvagem (2024), uma das melhores animações do último ano, quanto Paralives, um jogo de simulação de vida. Nos três casos, a estética é um 3D que utiliza um traçado típico das animações 2D — um estilo mais artesanal — aplicado no mundo das três dimensões. Essa estética é equilibrada com uma dose de realismo nas luzes, sombras, fluidos e reflexos. O resultado é bem balanceado, sendo muito deslumbrativo e real, mas sem perder uma certa fantasia onírica.
Por fim, o único problema de Flow talvez seja uma certa dependência visual. Em diversos momentos, senti que o foco do filme era muito mais voltado para exibir a beleza visual do que, propriamente, contar uma história. Por consequência, penso que, por mais simples e direta que seja a base do enredo de Flow, acaba parecendo muito difícil para que ele se cristalize no tempo. Em outras palavras, Flow é muito bonito, criativo e funcional, mas sinto que pode ter dificuldade em se manter memorável.
(Nota: Este texto foi publicado originalmente no site Cinemanorama e, desde setembro de 2025, encontra-se também disponível no site Suborno.)