Código Preto

Direção —

Gêneros — ,

Ano — 2025

O último filme de Steven Soderbergh explora a moralidade dentro de um meio em que a mentira é essencial para sobreviver. O resultado é hipnotizante e tem um desenrolar casualmente criativo.

 Há um momento em A Regra do Jogo (1939) em que Octave (Jean Renoir) comenta: “Ouça, Christine, vivemos numa época em que todos mentem”. Oitenta anos depois, essa máxima parece mais um ditado atemporal do que demarcação da modernidade do século passado. O filme de Renoir usa a teatralidade para se debruçar sobre a aristocracia francesa e as normas sociais: os arquétipos do teatro francês clássico aparecem na forma dos personagens, enquanto todo o espetáculo é uma sugestão do colapso da aristocracia. Nessa decadência, um dos pontos principais é contestar como a sociedade tolera as mentiras e a infidelidade quando praticadas conforme as regras sociais. Código Preto (2025) também trabalha essas questões. É verdade que não é tão afiado quanto o clássico, mas sua modernizada de tensão política é igualmente charmosa e eficiente.

No último filme assinado por Steven Soderbergh, acompanhamos um casal de agentes de inteligência, Kathryn (Cate Blanchett) e George (Michael Fassbender). O ponto de perturbação surge quando George descobre um vazamento de informações confidenciais sobre um novo software secreto chamado Severus, que possui uma conexão com armamentos nucleares. Há uma lista de cinco nomes suspeitos e um deles é Kathryn. Sabendo da chance de ter sua esposa presa por traição caso as suspeitas sobre ela se confirmem, George traça uma investigação para proteger sua esposa. No caminho, ele usa a ajuda de Clarissa (Marisa Abela) e James (Regé-Jean Page) para conseguir informações, enquanto lida com Freddie (Tom Burke) e Zoe (Naomie Harris), psicóloga da empresa que atende todos eles. Nesse jogo, ganha quem mentir melhor. 

O jogo de Código Preto é uma competição provocativa, ainda que velada. Depois de George descobrir as suspeitas contra sua companheira, ele arranja um jantar em sua casa e convida os outros quatro suspeitos. Essa é uma jogada de mestre: quem quer que seja o traidor da nação, muito provavelmente não sabe que o fato da existência de um Judas já é algo comentado e, no caso, também investigado. Essa narrativa, com isso, tem uma certa elegância que remete a alguns livros de mistério de Agatha Christie. Por consequência, além de ser um filme bastante funcional na construção do emaranhado lógico e no efeito de hipnose — que prende quem vê —, Código Preto acaba sendo uma obra direta ao ponto, com um ritmo que confia na essência da história e não precisa de enfeites. Isso não significa que a obra seja simplista, pelo contrário, mas quer dizer que ela não conta com nenhum instante filler.

Obviamente, isso funciona porque as peças que estão no tabuleiro são uma mescla bem dosada de originalidade e arquétipos. Voltando ao clássico francês, ao passo que A Regra do Jogo aposta em uma teatralidade mais óbvia, aqui o objetivo é justamente a discrição e a capacidade de enganar. David Koepp, que assinou o texto do filme, concretizou esse trabalho ao dar pistas sobre os jogadores em meio a conversas e jogos psicológicos. Você consegue captar bastante coisa, mas sempre tem um pé atrás com o que é verdade. Nisso, muitos deles são opostos: Clarissa e Freddie, por exemplo, são um casal, mas parecem viver numa constante luta. No jantar, depois de George revelar que Freddie tinha encontros secretos com uma outra mulher, Clarissa crava uma faca na mão do homem. Posteriormente, os dois se acertam porque, afinal, é melhor fingir do que encarar a verdade. 

No centro gravitacional, Soderbergh assume a direção com bastante êxito. Na cena de abertura, por exemplo, George entra em um clube noturno para conversar com Meacham (Gustaf Skarsgård), seu superior, e descobre os nomes suspeitos dos traidores. Nessa sequência, a câmera acompanha George pelas costas, remetendo a um jogo de videogame — no caso, GTA, mas prometo que essa é uma comparação positiva. O curioso aqui é que essa tática traz proximidade para George, mas sem dar na cara quem é ele — uma premonição da falta de confiança que se deve ter sempre com aquelas pessoas. No mais, penso que é bastante interessante como o diretor direciona o foco narrativo mais para a situação do para os personagens. Com isso, há diversos momentos em que a câmera parece mais interessada em enquadrar uma entidade invisível de suspense do que propriamente registrar ações e falas. 

Todavia, George é o melhor do filme. O agente calculista é perspicaz, mas também é frio: ele não hesita em expor as traições de Freddie na mesa e, depois, em usar a informação de drogas e amantes contra Clarissa em troca de favores. George faz tudo isso com a desculpa que: “Não gosta de mentirosos” — quando ele também é um grande falso. Com isso, ele até pode ser visto como um herói por colocar sua esposa acima do Estado, mas seus meios o tornam um pouco vilanesco. No mais, não vou me perder em contar mais detalhes, já que grande parte da graça de Código Preto vem de um desenrolar surpresa. O que posso falar é que conforme avança, o filme se torna cada vez mais hipnotizante. Embora sua estrutura seja simples, sua bola de neve é bastante instigante e é uma demonstração de que uma boa história compensa o resto. No final, mentira, às vezes, tem pernas bastante longas. 

(Nota: Este texto foi publicado originalmente no site Cinemanorama e, desde setembro de 2025, encontra-se também disponível no site Suborno.)

Código Preto

Título Original: Black Bag

Lançamento: 2025

Duração: 93 mins.

Gênero(s): ,

Classificação: 16

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