Quarteto Fantástico marca uma proposta de reinício simbólico para o MCU. Ao adotar uma estética retrofuturista com influências dos Jetsons e de 2001: Uma Odisseia no Espaço, o filme de Matt Shakman não busca apenas introduzir novos heróis, mas restabelecer uma simplicidade que há muito tempo se perdeu nos filmes do estúdio. Essa Nova York limpa e completamente idealizada é a expressão visual de um desejo de retorno a um ponto de estabilidade. É a forma com que o filme declara sua crença de que, para avançar, o MCU precisa regressar à inocência de outrora. Por isso, somos apresentados a um mundo utópico, onde os países vivem em harmonia, os governantes trabalham em vista de um bem comum e toda a população acata os conselhos de seus protetores sem hesitação. Até quando surgem manifestantes descontentes com uma atitude da superequipe, tudo é prontamente resolvido com um discurso-relâmpago de Sue Storm, que tranquiliza a todos dizendo que não há motivo para a irritação e, mais uma vez, a paz é restabelecida com facilidade.
Com isso, fico pensando em como a Marvel Studios se beneficiaria de mais filmes ambientados em realidades paralelas, em mundos que independem de uma diegese pré-estabelecida. Essa independência estilística, inclusive, é algo que me deixa otimista com a liberdade autoral que James Gunn promete para a nova fase da DC nos cinemas. A essa altura, já é evidente o quanto estamos saturados dos vícios de um universo compartilhado, onde cada filme é só um trailer para o próximo, uma constante promessa do que vem por aí, e que se isenta de qualquer peso dramático até em eventuais mortes, uma vez que o multiverso é a desculpa da vez para ressuscitar quaisquer personagens que vendam mais bonequinhos.
É nesse contexto que Primeiros Passos surge, sem se enquadrar como um filme de origem, mas de reordenação. Ele pula os eventos que deram poderes aos heróis pois está interessado em nos mostrar o que vem depois, quando esses símbolos virtuosos já estão consolidados. O Quarteto, aqui, não precisa descobrir quem é. Ele já sabe. A narrativa, então, não trata da formação da família, mas de sua manutenção. Com o grupo já formado, são seus vínculos afetivos que sustentam os dilemas dramáticos da obra, e essa escolha só funciona porque o elenco traz um senso de coesão raro aos filmes de equipe da Marvel e aos filmes do Quarteto Fantástico: pela primeira vez, o grupo realmente parece uma família.
Sue Storm é o eixo emocional dessa família, e o longa acerta ao não reduzi-la à esposa de um gênio, preferindo tratá-la como uma diplomata influente que sustenta esse gênio com firmeza. Já o Reed Richards de Pedro Pascal carrega consigo um certo cansaço, de alguém que conhece o futuro e sabe que ele exige sacrifícios. O cientista acaba sendo o elo mais fraco desse quarteto, distante do patamar alcançado por seus colegas de cena. Sua genialidade nunca convence, e isso se deve tanto à atuação protocolar de Pascal (que parece fadado a interpretar toda figura paterna da cultura pop) quanto ao roteiro que insiste em vendê-lo como o homem mais inteligente da Terra, ao mesmo tempo em que o retrata tomando decisões estúpidas que ninguém ousa questionar.
Johnny e Ben também encontram aqui suas melhores versões. Johnny é um jovem adulto que tenta se provar num time onde os demais já têm seus lugares definidos, mas sem deixar de lado o bom humor e a satisfação em irritar os amigos. Ben, por sua vez, se revela como um brutamontes que esconde uma alma gentil, com uma vulnerabilidade e carência emocional de alguém que quer ser visto além do monstro — características reforçadas por seu olhar expressivo, que se destaca em meio ao amontoado de rochas. A dupla pode não ter o mesmo destaque que o casal protagonista, mas suas interações sempre contribuem para dar mais ritmo e humanidade à trama. Destaco, ainda, a introdução precoce do bebê Franklin Richards como uma jogada narrativa e industrial. Narrativa, porque traz um senso maior de urgência e tensiona o grupo com um elemento de fragilidade real; industrial, pois escancara a eterna obsessão do MCU com futuras expansões, introduzindo um personagem de potencial praticamente ilimitado.
Essa obsessão em antecipar o futuro talvez explique por que o filme parece tão ansioso em seguir em frente. A química do núcleo central é ótima e a dinâmica que se estabelece em suas interações é muito rica, mas essas relações carecem de tempo para amadurecer. O filme não é mal montado e nem tem um ritmo confuso, mas se torna apressado por nunca deixar que suas imagens respirem um pouco. As ideias parecem sempre maiores que o tempo para realizá-las. A ameaça de Galactus, por exemplo, é visualmente impressionante, mas conceitualmente distante: sentimos sua escala imponente, mas não o peso do que ele representa. Tudo é concatenado com urgência, como se estivéssemos em um constante clímax que não permite momentos de pausa. Por um lado, as quase duas horas passam voando, mas por outro, fica evidente que o filme se beneficiaria muito de uns 30 minutos extras para estabelecer seus conflitos com mais calma. Mesmo que um prólogo não seja necessário, faz falta um epílogo que nos deixe descansar um pouco depois da agitação, mas os créditos finais chegam antes.
Mais do que uma reinvenção, o filme é um gesto de escuta: a Marvel, enfim, para de tratar o Quarteto como uma obrigação contratual e começa a enxergá-los como a família que são. É uma bem-vinda proposta de reimaginação que se ancora num passado estilístico para propor um futuro simbólico. Em vez de sufocar a fantasia com dilemas existenciais, o longa abraça o surrealismo de Jack Kirby como sua essência e devolve ao público a sensação de estar diante de figuras que transcendem nossas limitações e nos garantem proteção. Finalmente, na quarta tentativa, temos um filme do Quarteto Fantástico para chamar de bom e, talvez, os primeiros passos de um MCU disposto a se entregar mais ao farsesco.