O body horror emergiu como subgênero nos anos 1980, ganhando forma com David Cronenberg e Phillip Brophy. O foco estava na destruição corporal e no medo do próprio corpo ao explorar mutações grotescas entre carne e máquina. No século XXI, o subgênero incorporou uma crítica aos padrões de beleza e aos procedimentos estéticos, espelhando a medicalização da aparência e a cultura do corpo como mercadoria. Obras como Titane (2021) transmutam cirurgias plásticas em atos viscerais, interrogando o culto ao aperfeiçoamento corporal imposto pela estética hegemônica. Hoje, o gênero debate como a deformidade cartesiana deixa de ser espetáculo isolado para se tornar metáfora das mutações impostas pelos ideais. Indo além disso, o body horror teatral de Emilie Blichfeldt, A Meia-Irmã Feia (2025), é uma das adaptações mais ousadas e criativas da clássica história de Cinderela.
No filme, Elvira (Lea Myren) é uma jovem desajeitada que sonha em se casar com o Príncipe Julian (Isac Calmroth), o solteiro mais desejado do reino. Quando sua mãe, Rebekka (Ane Dahl Torp), decide se casar com Otto (Ralph Carlsson) por interesse financeiro, Elvira e sua irmã Alma (Flo Fagerli) conhecem a nova membro da família: Agnes (Thea Sofie Loch Næss), filha de Otto. Apesar da boa reação das duas jovens, Elvira se sente inferior à beleza de sua meia-irmã. Quando Rebekka descobre que seu agora falecido marido também estava falido e que o casamento foi em vão, ela passa a investir em Elvira: passa a submeter a garota a diversas cirurgias plásticas para fazê-la bonita o suficiente para conquistar o coração do príncipe e, assim, tirar a família da pobreza. Durante o processo conturbado, Elvira vê seu exterior se tornar mais bonito, enquanto seu interior se torna cada vez mais feio.
A história de A Meia-Irmã Feia é uma subversão do clássico Cinderela: dessa vez, não acompanhamos a narrativa da boa moça maltratada, mas da irmã malvada. No entanto, penso que o êxito dessa tradução advém da negação do óbvio: as motivações para a maldade de Elvira não são apenas bem justificadas, mas têm como base um processo de despersonalização. É verdade que a jovem sofre com sua aparência, mas isso não ofusca o brilho do seu coração: ela aceita ajuda do cocheiro para subir na carruagem e não se ofende quando sua mãe diz que ela não tem futuro algum com “aquela cara”. Com isso, Elvira sofre uma boa dose de humilhações antes mesmo de mostrar seu lado ruim: durante o ensaio de balé para o baile do príncipe, ela é mandada para o fundo da sala por ser muito feia. No começo, ela tenta ver isso mais como incentivo não-saudável para mudar “para melhor”.
O filme, no entanto, não usa essas agressões como uma justificativa barata para a subversão da personalidade de Elvira. O que acontece é que essas violências explicam sua inserção na jornada de derrocada — obsessão pela beleza — que a conduz à insanidade e desperta seu lado diabólico. Talvez o primeiro indício dessa nova face de Elvira é quando ela delata para sua mãe que Agnes estava fazendo sexo com um dos empregados. No filme, isso vem depois de uma cirurgia plástica dolorosa, a ingestão de um verme que a deixará mais magra e um encontro com o príncipe que resulta nele falando que “nunca foderia uma coisa dessas”, referindo-se à jovem. De novo, nada disso justifica sua maldade, mas explica um processo de insanidade que dá origem a seu lado cruel — considerando também a comercialização de Elvira feita pela sua mãe, que nunca mede suas palavras.
Em paralelo, as histórias secundárias de A Meia-Irmã Feia não decepcionam. Voltando a Agnes e seu caso romântico com um dos empregados da casa, Isak (Malte Gårdinger), temos uma narrativa mais interessante do que a história original de Cinderela: Agnes ama o rapaz, mas sabe que o dinheiro é mais importante, por isso não pode fugir com Isak e se esforça para se casar com Julian. Também, temos a irmã de Elvira, Alma, que é naturalmente mais bonita, mas não se importa com nada disso. Na verdade, ela só não foi escolhida para se casar com o príncipe porque não havia menstruado ainda — algo que ela esconde de sua mãe quando começa a acontecer. Quanto a Rebekka, mesmo falando de si própria como tendo “peitos caídos”, ela não hesita em transar com um jovem príncipe que se apaixonou por Elvira durante o baile real.
No entanto, a cereja do bolo do filme é sua parte visual. Em um primeiro momento, o body horror serve para canalizar as humilhações e, depois, parte para seu êxito do grotesco. Com isso, em uma das primeiras cenas, vemos Elvira sentada, nua, com o foco em sua barriga dobrada. O close-up é tão intenso que há uma leve distorção na imagem do corpo de Elvira nesse momento. Em seguida, o filme trabalha na reimaginação dos procedimentos estéticos: a rinoplastia é uma martelada para quebrar o nariz e segurá-lo com uma focinheira de metal, ao passo que o Ozempic é um verme que cresce na barriga de Elvira e come tudo que ela ingere. Pior que isso, apenas um alfaiate que se denomina Fada Madrinha e que assedia suas clientes com a desculpa de “arrumar os peitos no vestido”. O filme é um esforço bastante criativo, agonizante e ácido.
Conforme o filme avança, vai se tornando cada vez mais nojento, mas também mais criativo. Existe uma cena em que Elvira come macarrão na banheira enquanto Agnes penteia seu cabelo. O macarrão cai na água e, logo depois, os cabelos de Elvira também começam a cair na água. Não sei se a referência é intencional, mas só consigo lembrar de uma cena nojenta de Vidas sem Destino (1997). Por outro lado, a agonia está bastante presente: a diretora Blichfeldt faz questão de enquadrar bem o momento em que Elvira tem novos cílios costurados nas pálpebras dos seus olhos com uma agulha grossa. Mais tarde, após perder o príncipe para Agnes e ver que seu pé é muito grande para o encaixar no sapato, ela corta seus dedos com a ajuda de sua mãe — assim como no conto dos Irmãos Grimm. No final de tudo, Elvira cai da escada, quebra seu nariz e vomita meia dúzia de vermes gigantes.
O elemento que unifica A Meia-Irmã Feia é um certo aspecto teatral, que explora bem a plasticidade com uma trilha sonora sofisticada. Com isso, as cenas da imaginação romântica de Elvira remetem à adaptação de A Flauta Mágica (1975) feita por Ingmar Bergman, ao passo que a realidade cotidiana remete à floresta assombrada de A Bruxa (2015). É verdade que o filme peca por confiar sua crítica na esfera de recepção e não no texto da própria obra, mas, ainda assim, tudo funciona. No final, Elvira atinge seu suposto ponto alto na cena do baile, justamente no momento em que está mais distante da sua verdadeira aparência e mais próxima de parecer Agnes. Julian, porém, escolhe a versão original, não importa o que Elvira ou sua mãe tentem fazer. O que resta é uma Elvira em pedaços — física e mentalmente.
(Nota: Este texto foi publicado originalmente no site Cinemanorama e, desde setembro de 2025, encontra-se também disponível no site Suborno.)