Pedreiro também pode ser viado? Para muitos, as fronteiras entre a sexualidade e o gênero ainda são bastante nebulosas. Todos temos aquele tio que acredita que gays querem ser mulheres. Ou, ainda pior, que todos os homens artistas são gays e, por conseguinte, carregam traços de uma suposta feminilidade. No entanto, você e eu sabemos que a ideia de ser homossexual vai além de uma associação fraca perante uma concepção frágil baseada no conservadorismo cristão. Nós, os viados, passamos pelo processo de definição com base na nossa atração sexual, comportamento social e autoidentificação, mas somente nós sabemos que essa inserção é um processo entrelaçado e não uma simples definição encaixotada. Os héteros perguntam por que os gays fazem de sua sexualidade um traço de personalidade, mas, na verdade, isso vem antes da parte deles do que de nós.
Homem com H (2025) é a merecida cinebiografia de Ney Matogrosso. Encabeçado por Esmir Filho, o filme apresenta a trajetória da infância rebelde ao estrelato do cantor. Partindo da infância do garoto em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, e dos constantes embates familiares em razão dos preconceitos de seu pai, Antônio (Rômulo Braga), a obra perpassa a vida de Ney Pereira (Jesuíta Barbosa) até a ascensão de sua carreira artística. Sempre lutando contra problemas financeiros e a censura da Ditadura Militar, Matogrosso constrói uma veia performática memorável, marcada por sua voz única. Passando pela banda dos Secos & Molhados e por uma carreira solo repleta de turbulências, Ney também lida com o envelhecimento e adoecimento de seu pai, ao passo que vê seus amigos e companheiros se tornarem vítimas do vírus do HIV.
Pensar na história de Ney Matogrosso é pensar na história do rapaz com seu pai. Como ele mesmo confessa à sua mãe em um momento mais perto do final do filme, todas as escolhas de sua vida e carreira foram orientadas pelo conservadorismo e reprovação de seu velho. Com isso, o estilo e o jeito do cantor foram pensados como uma resposta às repressões de seu pai. Nesse sentido, o embate entre Ney e seu pai é de grande importância, mas, no filme, isso nem sempre é explorado com a devida intensidade. Na infância do cantor, as falas do pai soam como arquétipos bregas da época. No final do filme, vemos Antônio já fragilizado por uma doença, o que permite uma reconciliação entre pai e filho — um encerramento genérico e até miraculoso, eu diria. Para ser sincero, acredito que exista bastante complexidade em Antônio, mas o filme preferiu seguir com um caminho mais idealizado.
Esmir Filho, que eu não conhecia antes, escreveu e dirigiu Homem com H. Embora sinta que seu estilo parece seguir uma certa concepção do que é “diferente”, ele faz um bom trabalho de modo geral. Penso que existem dois elementos mais centrais no trabalho dele. Em primeiro lugar, podemos pensar na complexidade de algumas associações. Por exemplo, no início do filme, Antonio coloca o pequeno Ney para bombear água para a caixa d’água, com o intuito de fortalecer o garoto. No momento, a câmera sai de Ney e foca no mecanismo da bomba, mostrando um vai e vem do cano — uma associação sexual — e, depois, quando voltamos para o garoto, ele já está adulto, sinalizando que o tempo passou e que ele ainda é vítima de seu pai. Esses símbolos são sutis, mas funcionais, visto que estão por todo o filme — tal como uma cobra que representa a disseminação do vírus do HIV.
Outro grande feito da direção é sua capacidade de não precisar se apoiar na nostalgia das canções para se sustentar — como em Um Completo Desconhecido (2024) —, ao passo que consegue trabalhar questões de gênero e sexualidade sem cair em uma verbalização quase pedagógica. No entanto, claro que Esmir comete alguns deslizes. Embora o filme acabe sendo corrido demais, meu maior problema é um certo desvio de estilo em “momentos acessórios”. No começo do filme, vemos o pequeno Ney em uma floresta, o que reaparece em outros momentos. Porém, esses instantes, que parecem ter o objetivo de transmitir uma certa interioridade psíquica de Ney, são descolados demais do restante. Além disso, no final do filme, o próprio Matogrosso aparece em um show em 2024, um epílogo que somente aparece para confundir as fronteiras do filme com um suposto documentário.
Em Homem com H, o corpo é posto como uma arma pela liberdade. Em sua carreira, Matogrosso usou bem o seu corpo teatralizado para construir sua identidade e seu arsenal de luta. Durante o filme, fica claro que o cantor é obcecado pela liberdade e pela negação de “ser criança”, bem como acredita no poder da provocação. Claro que os números musicais são essenciais nessa construção, mas gostaria de dar um passo para trás e pensar no corpo no filme. Nesse sentido, Esmir consegue propor uma sexualização dos corpos que é sutil, ainda que provocativa: nas cenas da passagem de Ney pelo exército, os momentos de exibição e conflitos de corpos são alinhados com Bom Trabalho (1999), ao passo que as cenas de sexo são explícitas o suficiente para canalizar o tesão, mas não tanto a ponto de perder uma certa elegância. Os corpos são bonitos e sensuais, mas, acima de tudo, funcionais.
Os momentos mais pesados do filme se concentram nos últimos trinta minutos, quando vemos a experiência de Matogrosso durante a epidemia de AIDS nos anos 1990. Para nós, os viados, HIV e AIDS são uma sina: a imprensa e o conservadorismo não mediram palavras em associar o vírus e a doença aos homossexuais. Mesmo nos dias de hoje, essa associação nos estigmatiza. No filme, acompanhar o cantor vendo seus amigos próximos — como Cazuza (Jullio Reis) — e seu companheiro, Marco (Bruno Montaleone), se desfazerem e falecerem devido à doença é angustiante e desolador. No caso de Marco, acaba sendo muito bonito e carinhoso como Ney cuida dele nos seus últimos dias, mas o coração se quebra quando o pior acontece. É verdade que, como Matogrosso diz, essa doença veio para nós dar visibilidade — uma merda que tantos precisaram morrer para isso acontecer.
Uma coisa engraçada sobre biografias filmadas é que nenhuma delas é tão boa a ponto de fazer jus àquela vida que ela tenta contar em um espaço de duas horas. Em outras palavras, gosto de pensar que esses filmes, por melhores que sejam, sempre receberão nota nove, enquanto o dez sempre vai ser reservado para as pessoas que inspiraram essas obras. Isso fica claro quando pensamos em Jesuíta Barbosa, que interpreta Ney Matogrosso e cujo trabalho está incrível — principalmente pensando na incorporação dos gestos involuntários do cantor — mas nada se compara ao original — e nem deve ser comparado. No final do filme, um letreiro aparece: “Para Ney Matogrosso, por ousar ser livre”. Tudo o que Matogrosso fez não é só para todos os gays confundidos com mulheres, mas também por todos aqueles pedreiros que podem ser viados.
(Nota: Este texto foi publicado originalmente no site Cinemanorama e, desde setembro de 2025, encontra-se também disponível no site Suborno.)