Existe uma famosa lenda de que Robert Johnson, lendário guitarrista do Mississippi, teria feito um pacto com o diabo para se tornar um músico extraordinário. Dizem que ele levou sua guitarra até uma encruzilhada, onde um misterioso homem a afinou e concedeu ao rapaz habilidades sobrenaturais. Segundo esse mito, Johnson saiu desse acordo dominando a técnica musical com suas composições marcantes e uma maestria que manteve até sua morte aos 27 anos. Porém, podemos ser sinceros? Sabemos que essa história é só uma manifestação do racismo típico dos Estados Unidos daquela época. Deve ter sido insuportável para os brancos a ideia de que um homem negro, pobre e vindo do sul, pudesse tocar bem melhor do que eles. O novo filme de Ryan Coogler investiga os primeiros passos do blues na América e “reinterpreta” essa lenda em um ótimo longa que mistura terror, drama e ação.
Em Pecadores (2025), acompanhamos os irmãos gêmeos Smoke e Stack (Michael B. Jordan), que, após anos servindo à máfia de Chicago, retornam ao Delta do Mississippi com dinheiro roubado e um sonho ousado: abrir um juke joint voltado para a comunidade negra local. Com a ajuda do primo guitarrista Sammie (Miles Caton), de uma equipe formada por artistas, comerciantes e lavradores, e enfrentando a ameaça dos seguidores da Ku Klux Klan, os irmãos transformam uma antiga serraria em um bar de música e resistência. Mas o blues logo desperta forças muito além do mundo dos vivos: quando uma misteriosa figura irlandesa chega à região, trazendo com ela uma horda de vampiros e promessas de imortalidade — uma fuga possível do racismo e da dor. Os sobreviventes, então, precisam decidir o que estão dispostos a sacrificar por sua comunidade, sua arte e sua alma.
Um dos fatores que coloca Pecadores nos holofotes quando pensamos em outras produções que intercalam terror com ação é o fato de o filme de Coogler ser mais charmoso e elegante. Em poucas palavras, trata-se de uma obra de terror sobre vampiros que não dispensa um subtexto político. No entanto, quando pensamos na execução, vemos algo mais refinado. Essa sofisticação aparece, em primeiro lugar, na ambientação: estamos nos Estados Unidos, na década de 1930, quando as leis do apartheid eram aplicadas com rigor e a população negra buscava auxílio nas religiões cristãs. No filme, esses elementos aparecem de forma clara — como o pai de Sammie, um pastor que desgosta de blues — ou de forma mais sutil — tal como o casal que é dono de dois mercados, um para os brancos e outro para os negros —, o que pode passar batido por boa parte do público.
Com isso, a primeira hora de Pecadores é mais preocupada com a construção da trajetória e preparação do terreno para o terror. Nesse caminho, há uma enorme riqueza dramática que estabelece a conexão dramática — apenas para ser destruída na segunda metade do filme. Pense, por exemplo, em Delta Slim (Delroy Lindo), uma lenda musical local que, mesmo tocando há mais de dez anos, ainda tem que mendigar moedas em uma estação de trem. Ele é recrutado para tocar na noite de abertura do bar dos gêmeos. No caminho ao bar, o músico, Stack e Sammie passam por uma plantação de algodão, onde alguns presos estão trabalhando na escavação de um buraco. Slim grita para que eles levantem suas cabeças. O que acontece é que ele conhece todos aqueles rapazes e ele foi o único que teve a sorte de escapar do destino de muitos ex-escravos: o encarceramento injusto.
No dia da estreia do bar, Remmick (Jack O’Connell), um vampiro imigrante irlandês, tromba com um casal de adeptos da Ku Klux Klan. Ele não hesita em transformar ambos em seguidores. O chamativo nessa cena é que se estivéssemos falando de um filme de vampiro qualquer, dirigido por outro cineasta, essa teria sido uma cena inicial e não uma cena posicionada de forma mais estratégica no enredo. Durante a abertura do bar, os vampiros são atraídos por uma música que Sammie toca. Na cena, enquanto o jovem se apresenta, vemos diversas gerações de pessoas, todas unidas pela música. Para ser sincero, tentei pensar se os vampiros eram, em um primeiro momento, um símbolo para a Klan. Porém, quando Remmick oferece a vida de vampiro como uma forma de escapar da perseguição da seita, a crítica que fica é que seria melhor ser um morto-vivo do que um negro nos Estados Unidos.
A música, por sua vez, tem um papel fundamental no filme. Tanto as canções dentro do filme quanto aquelas ouvidas somente por nós possuem um embasamento estético e uma função dramática. No começo do filme, o pai de Sammie é contra ele seguir seu sonho de ser um cantor de blues, taxando o gênero como música do diabo — blues se debruçava sobre as temáticas dos sofrimentos da comunidade negra, ao contrário da música gospel, que era mais conformista. Mais tarde, quando os vampiros chegam à festa, eles fazem uso do blues para convencer Mary (Hailee Steinfeld), ex-namorada de Stack, a deixá-los entrar no bar. Nesse movimento de apropriação cultural, a música surge para dar ambiguidade — e, depois, para intensificar o terror, quando os vampiros fazem uma roda de ciranda e cantam músicas folclóricas. No mais, toda a trilha sonora do filme é incrível.
Depois de ver seus amigos, seus interesses românticos e o irmão serem transformados em vampiros e morrerem, Smoke consegue assassinar Remmick e acabar com os vampiros. Sammie volta para a Igreja de seu pai, mas não abre mão da carreira musical em prol da salvação espiritual, fugindo para Chicago. No dia seguinte, Smoke mata um grupo de adeptos da Klan em uma das cenas mais satisfatórias do ano. Sessenta anos depois, Sammie, com uma carreira sólida de músico, recebe a visita de Stack e Mary, os dois únicos vampiros que conseguiram escapar naquela noite. Apesar de alguns excessos, Pecadores ainda é um filme visualmente bonito, com grande êxito na execução de ação, drama e horror — e que, no fim, deixa um comentário: é melhor ser um morto vivo do que um negro nos Estados Unidos — mas, afinal de contas, não é isso que realmente acontece?
(Nota: Este texto foi publicado originalmente no site Cinemanorama e, desde setembro de 2025, encontra-se também disponível no site Suborno.)