Em Amélie et la Métaphysique des Tubes, o nascimento da consciência é tido como um evento de ordem metafísica. Na trama, conhecemos Amélie, uma garotinha de dois anos e meio que acredita ser Deus. Antes de compreender o que é o tempo, a linguagem ou o outro, a pequena protagonista acredita ser o centro do universo, e o filme abraça sua lógica sem negá-la ou questioná-la, construindo sua narrativa a partir desse olhar em formação. Essa ideia ousada, em vez de se tornar um mero capricho narrativo, vira o ponto de partida para uma investigação de como o pensamento humano se forma e se adapta ao mundo externo. Assim, o filme entende a primeira infância como um estágio de onipotência perceptiva, em que o eu e o mundo ainda não se distinguem, e tudo parece existir apenas porque Amélie deseja, do vento que sopra por sua vontade à primavera que só começa sob seu comando. À medida que o olhar dela se complexifica, o mundo se torna igualmente complexo, e a percepção da protagonista deixa de ser apenas o ponto de vista da obra para se tornar o próprio princípio que a rege.
Isso possibilita uma experiência sensorial e poética sobre nascimento, discernimento e perda: o ponto de vista infantil é aproveitado para simplificar o mundo como uma sucessão de milagres e permite, ainda, que o longa trate de temas profundos sem parecer didático. Tudo parte de uma mente que ainda não sabe diferenciar o real do imaginário; consequentemente, a infância se torna um estado de percepção absoluta, em que o mundo só existe porque a criança o percebe — e a escolha pela animação 2D se torna essencial para que essa lógica se sustente. O filme adota uma direção de arte composta por traços arredondados, sem contornos e com cores vibrantes, construindo uma estética maleável que espelha o desenvolvimento individual de Amélie. Nesse sentido, cada mudança visual acompanha um avanço da consciência, encenando o processo do despertar da mente na própria forma fílmica, uma vez que tudo espelha o pensamento pré-lógico da protagonista.
Também é válido apontar como a ingenuidade onipotente de Amélie decorre, em parte, da ausência de linguagem. Ela só acredita ser Deus porque ainda não sabe expressar seus desejos e frustrações. Em vista disso, basta que ela aprenda a falar e sua onipotência se desfaz, dado que a linguagem, ao dar nome às coisas, também delimita o mundo. Assim, o filme dialoga com o pensamento lacaniano de que o sujeito só se constitui ao ingressar no campo simbólico da linguagem, reconhecendo-se como ser separado e, portanto, incompleto. Nessa lógica, o nascimento da linguagem inevitavelmente acompanha o reconhecimento do outro e, com isso, a consciência da morte. Com o amadurecimento da fala, perde-se o poder de criar o mundo com o olhar, e a imaginação humana deixa de ser pura criatividade para dividir espaço com a capacidade de interpretar aquilo que já existe, criando limites entre o que desejamos e o que as regras do mundo permitem.
Logo na primeira cena, a narração de Amélie já nos constata: “Você não diz que as orelhas têm um escutar. Nem que as narinas tenham um respirar. Mas os olhos têm um olhar.” A frase parece ingênua à primeira vista, mas resume a essência do filme: o olhar é mais que o ato de ver, é a construção íntima e subjetiva da percepção e da própria existência. É pelo olhar que Amélie cria o mundo — não é à toa que o design da personagem aposte em olhos tão grandes e expressivos —, e é por meio dele que ela aprenderá a perdê-lo. Contudo, é só quando esse olhar se afeiçoa a Nishio-San, a governanta japonesa, que a obra atinge seu ápice emocional. Numa das cenas mais belas da animação, Nishio-San narra à menina a perda de seus pais durante a guerra, enquanto prepara a refeição da família e utiliza grãos de arroz para encenar suas lembranças. A sequência nunca sai do espaço limitado da cozinha e, portanto, não recorre a flashbacks para ilustrar a história contada. Logo, o horror nunca é mostrado de forma explícita, apenas sugerido no modo com que o arroz é lavado. Essa economia revela uma compreensão profunda sobre como o olhar infantil processa o horror e o luto, confirmando a maturidade de um longa capaz de abordar os traumas do Japão pós-guerra sem jamais abandonar a mediação do olhar infantil. Aos poucos, a Amélie-Deus dá lugar à Amélie-humana, consciente dos infortúnios da vida e de sua impotência diante da dor alheia.
Não é absurdo apontar Amélie et la Métaphysique des Tubes como uma das obras mais sensíveis e intelectualmente honestas do ano, não por tentar ser “filosófica”, mas por entender que a filosofia nasce de um espanto infantil diante do mundo. A infância, aqui, é o princípio da razão: um estado metafísico em que o indivíduo e o mundo começam, enfim, a se distinguir. Crescer, para Amélie, implica em aceitar que o universo já não a obedece, e que viver vai exigir adaptações constantes a essa recusa. O filme se encerra no instante em que ela começa a compreender isso, e é essa constatação, tão simples e óbvia, que o torna tão único. É uma leitura ousada do amadurecimento humano, conduzida com uma simplicidade rara no cinema contemporâneo que o permite registrar, com primor, o nascimento da percepção e o fim da inocência absoluta. Em sua despretensão, trata-se de uma das mais rigorosas representações cinematográficas sobre o surgimento da consciência.