Sirāt

Direção —

Gêneros —

Ano — 2025

Vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, Sirāt tenta disfarçar seu vazio com momentos abruptos de impacto, mas falha em construir qualquer substância narrativa ou emocional.

Atualmente, muito se fala sobre os chamados Oscar bait: filmes feitos sob medida que se moldam para cumprir uma checklist de tudo que mais agrada os votantes da Academia, visando garantir manchetes, indicações e, quem sabe, alguns prêmios. Dito isso, algo semelhante começa a ser percebido no circuito de festivais, um fenômeno paralelo e igualmente calculado que poderíamos chamar de “Cannes bait”. São obras que tentam parecer profundas através de temáticas socialmente relevantes, premissas econômicas e uma linguagem pretensiosa que confunde intensidade com profundidade. Nessa categoria, podemos apontar longas como Triângulo da Tristeza, Emilia Pérez e este último vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, Sirāt. Digo isso porque tudo nele soa cuidadosamente planejado para chamar a atenção de um júri europeu, numa estética vazia de um filme carente em conteúdo que, ao rejeitar as convenções do cinema comercial, acaba criando outras convenções igualmente previsíveis.

Após cerca de uma hora de projeção sem muita coisa acontecendo, o filme nos surpreende com uma cena chocante e muito bem conduzida. É um momento que surge sem aviso e se potencializa pelo contraste com a morosidade que até então parecia reger a obra, numa explosão de brutalidade que reconquista o interesse do espectador e gera ansiedade para saber quais serão os desdobramentos da segunda metade — algo bem parecido com os excelentes midpoints de Durval Discos e Parasita. Porém, em vez de usar sua reviravolta para virar o filme ao avesso e se adaptar às mudanças de rumo possibilitadas pela virada, o diretor Oliver Laxe opta por simplesmente retomar a lentidão da primeira metade. Isso faz com que esse ápice de adrenalina fique completamente despropositado, e só piora quando o diretor recorre ao mesmíssimo artifício na passagem para o terceiro ato, tentando repetir esse efeito do choque pelo choque. Assim, fica evidente como Laxe parece desesperado em provar a intensidade da própria obra, e a falta de uma progressão dramática coerente transforma esses momentos em meros exercícios de impacto, sem consequência real e carentes de qualquer sentido narrativo ou emocional. Logo, a premissa do pai em busca da filha desaparecida é totalmente escanteada e a brutalidade vira só um pretexto para reafirmar uma suposta coragem autoral.

Além dessa inconsistência estrutural, outro aspecto que compromete muito o longa é sua visão moralmente confusa e politicamente desonesta. Na ânsia de criar um cenário apocalíptico de raves no deserto marroquino, o diretor reduz o norte da África a um espaço genérico, um palco convenientemente despolitizado em prol da crise existencial dos protagonistas europeus. Dessa forma, ignoram-se as tensões históricas do Saara Ocidental e, pior ainda, o território vira um parque de diversões moralista que pune todos aqueles que tiverem intenções mundanas e impuras, como se a aridez desértica fosse punitiva por si só. A trupe que acompanha pai e filho nessa travessia é retratada como um grupo de hedonistas ignorantes, tratados com exotismo e nunca explorados além dos próprios nomes, visto que nunca conhecemos o mínimo de seus desejos ou inquietações, e sua miséria parece bastar para o filme, que jamais busca qualquer peso ou aprofundamento que nos mostre quem são essas pessoas.

Ainda assim, não nego que haja talento em Laxe. Há um olhar apurado para a composição das cenas e uma organização precisa dos elementos dispostos em quadro que nos mostram um cineasta consciente dos gestos que filma e justificam o entusiasmo de boa parte da crítica com a obra. O uso da luz natural ao longo de tantas tomadas externas é admirável, criando uma textura orgânica que confere um certo encanto às imagens, e o som é fundamental para a atmosfera de desolação do filme, criando momentos de imersão sensorial genuína que, isoladamente, têm muita força. Em alguns trechos, há também um domínio notável da escala da paisagem, reduzindo os personagens a figuras quase imperceptíveis diante da imensidão. O problema é que todo esse virtuosismo técnico parece existir para si mesmo, envolto num formalismo que fascina olhos e ouvidos na tentativa de disfarçar sua falta de substância e impressionar o júri enquanto se restringe à própria superfície.

No fim das contas, Sirāt é um filme que grita muito sem ter nada a dizer. Quer discutir a decadência moral do Ocidente, mas o faz com os mesmos mecanismos de exotização que tenta criticar, partindo de um olhar profundamente ocidental que se nega a enxergar o outro para além de sua função simbólica, ainda que continue se autoproclamando universal. Isso gera o paradoxo inquietante de uma obra sobre uma travessia longa e transcendental que nunca consegue transcender a própria ambição por prestígio, expondo, no processo, a cegueira de seu autor. Penso que esse seja o maior vício de boa parte dos “filmes de festival” contemporâneos: a obsessão por uma “arte maior”, espiritualizada e metafórica, em que a significação importa mais que o significado em si. O resultado é um cinema belo e vazio, que se leva a sério demais para perceber o quão superficial se tornou, e reflete apenas a vaidade de quem o faz e a complacência de quem o aplaude.

Sirāt

Título Original: Sirāt

Diretor:

Lançamento: 2025

Duração: 114 mins.

Gênero(s):

Classificação: 16

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