Sonhos de Trem

Direção —

Gêneros —

Ano — 2025

Sonhos de Trem abraça a ideia de que a vida só pode ser entendida em retrospecto, criando um belo filme sobre a grandeza daquilo que parece pequeno demais para ser notado.

Nossa noção de pertencimento parece ser sempre tardia. É só com o passar do tempo que percebemos se já estávamos ancorados a um lugar, a uma experiência ou a alguém que não soubemos reconhecer naquele momento. Por isso, acabamos vivendo como se tudo fosse passageiro demais para merecer nossa atenção: conversas rápidas, afazeres banais, pessoas que vêm e vão sem deixar marcas. Essa incapacidade de perceber, no presente, o valor do que já está diante de nós acaba nos cegando para a nossa própria existência, como se a vida pedisse distância para enfim nos mostrar como ela é, e nos condenasse a entendê-la só quando já não podemos mais ter o que ficou pra trás. Sonhos de Trem explora esse descompasso entre o que vivemos e o que assimilamos e faz dessa reflexão o centro de sua narrativa. A vida do lenhador Robert Grainier parece modesta demais para deixar sua marca no mundo, mas é nessa simplicidade que o filme enxerga a essência de um autoentendimento silencioso, que prioriza pequenos detalhes em vez de grandes eventos que podem vir ou não a acontecer.

Clint Bentley dirige a obra a partir desse olhar submisso, que vê grandeza no trabalhador comum e, apoiado na quietude do cotidiano de Robert, permite que o espectador se aproxime dele sem a necessidade de grandes dramatizações para deixar o filme mais atrativo. Bentley confia nos gestos mais sutis do protagonista para revelar, aos poucos, sua dimensão emocional: em vez de recorrer a longos planos contemplativos ou metáforas visuais grandiloquentes, o diretor apenas acompanha o dia a dia de um homem que trabalha, sofre, ama e tenta decifrar as próprias dores. Nessa recusa ao espetáculo, o longa explora como o tempo ressignifica as pessoas, transformando Robert em alguém cuja vida se sustenta na honestidade despretensiosa do que vive, bastando permanecer ao lado dele para que possamos entender suas falhas, desejos e inquietações. Assim, o filme encontra um ritmo contemplativo que não exagera na lentidão e se guia por uma atenção sincera ao humano que permite, com uma naturalidade impressionante, o reconhecimento da profundidade dessa vida tão simples.

Muito dessa naturalidade se deve à atuação contida de Joel Edgerton, que interpreta Robert Grainier como um homem estoico que frequentemente se cala por não ver muita necessidade em interagir com as pessoas ao seu redor. O personagem parece observar tudo à sua volta antes de tomar uma decisão, ciente de que todos os seus atos trarão uma consequência; por isso, cada gesto seu, da forma que ajeita o chapéu à atenção prestada aos relatos dos colegas ao redor da fogueira, parecem planejados para não incomodar e nunca chamar atenção para si. A narração constante de Will Patton, por sua vez, convoca imagens que o próprio Robert não saberia articular, e frequentemente funciona como ponte entre o passado e o presente, traçando comentários sobre o progresso americano na virada para o Século XX. Esse distanciamento dá muita profundidade ao momento em que Robert testemunha o frio assassinato de um trabalhador chinês, deixando nele um incômodo eterno por ter sido um mero espectador desse infortúnio, e Patton narra o episódio deixando claro como o protagonista se sente culpado pelo acontecimento, numa ferida que nunca cicatriza.

A cena do assassinato também resume bem a excelência da fotografia de Adolpho Veloso, que filma o ocorrido com uma brutalidade seca e sem ênfase para a barbárie, como se a violência ali cometida fosse só mais um gesto rotineiro. Ao destacar toda essa hostilidade como algo aceito, repetido e naturalizado naquele ambiente, a mise-en-scène reforça como o que mais assombra Robert não são ações das quais ele se arrependa, mas sim suas omissões — tudo aquilo que ele permitiu que acontecesse a terceiros por acreditar que “não era problema seu”. Com isso, a composição estética se torna igualmente fria e rígida, enfatizando a cumplicidade e o silêncio de todos os operários que jamais se deram ao trabalho de intervir quando um colega era ameaçado, e o visual do filme vira uma espécie de extensão dessa consciência ferida do protagonista, enquadrando o Oeste americano num tom trágico que só é quebrado nos momentos em que Robert está ao lado de sua esposa, Gladys.

Quando Gladys entra na história, ela traz consigo a possibilidade de que a vida seja aproveitada. Os encontros iniciais da moça com o lenhador parecem suspensos no tempo, como se o mundo congelasse ao redor do casal para dar mais peso aos momentos que eles compartilham lado a lado. A sequência em que os dois desenham com pedras o contorno da futura cabana na qual irão morar é um dos momentos mais belos e singelos do cinema recente, ilustrando a inocência de um amor que ainda não foi posto à prova e que, por conta disso, ainda pode aproveitar o momento e se entregar ao presente. O momento, inclusive, remete muito ao lirismo contemplativo dos filmes de Terrence Malick, que há décadas explora a força dramática do intimismo cotidiano. Dessa forma, quando o devastador incêndio chega de repente, o golpe nos atinge junto ao protagonista, como se a tragédia fosse uma consequência inevitável na vida de quem ousou amar. A dor pela perda da esposa e da filha é filmada com uma sobriedade que só a torna mais devastadora, já que agora Robert é obrigado a aceitar que tudo o que ele conquistou também pode ser tirado dele.

A partir daí, Robert segue em frente como pode. Ele vive como alguém que nunca encontrou o lugar exato a que pertence e, por isso, cada nova experiência parece trazer consigo uma nova dúvida existencial, que ele tenta ignorar sem sucesso. Aos poucos, descobre que muitas vidas se encerram sem encontrar um sentido claro em si, que certas dores jamais desaparecem e que algumas perguntas simplesmente não têm resposta. E mesmo assim, de alguma maneira, é possível resistir. Assim, Sonhos de Trem cumpre a difícil tarefa de retratar a vida de um homem que, anônimo como tantos outros, passou pelo mundo sem imaginar que sua história merecia ser contada. Que perdeu o que nem sabia possuir, que esperou pertencer a algo que já acontecia, e que amou sem nunca ter clareza do que esse amor significava.

Sonhos de Trem

Título Original: Train Dreams

Diretor:

Lançamento: 2025

Duração: 104 mins.

Gênero(s):

Classificação: 12

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