Não é exagero afirmar que vivemos um momento histórico em que o radicalismo, cada vez mais, deixa de ser uma ideologia e passa a se tornar método. Governos se sustentam com base no medo, a retórica da força domina o debate público e a arte, inevitavelmente, intensifica temáticas de teor revolucionário. Ora, com o discurso de ódio quase institucionalizado e as democracias parecendo cada vez mais reféns da própria retórica, o meio cinematográfico reage a isso produzindo obras que reiteram o valor da resistência. Uma Batalha Após a Outra, novo filme de Paul Thomas Anderson, se posiciona como um manifesto — não num sentido puramente panfletário, mas como denúncia do conformismo de um país que, à beira do colapso, ainda insiste em se considerar um farol do mundo livre. Assim, o longa é uma crítica direta às gritantes contradições do governo Trump, que, em nome da “ordem”, legitima o extermínio de grupos marginalizados por meio de políticas segregacionistas e de uma estrutura de privilégios que nunca foi abolida. Nesse contexto, o diretor subverte o blockbuster ao reduzir a ação de sua obra a uma sucessão de microconflitos morais, onde deslizes e desencontros vão criando um acúmulo crescente de tensões.
Essa ousadia estrutural é o que cria um filme tão único. PTA constrói sua encenação sem se forçar a seguir uma estrutura convencional, em que cada cena “cumpra um propósito”. O roteiro é simples, com pontos de virada mínimos e, por conta dessa simplicidade, o longa brilha por seu controle absoluto de tom, ritmo e mise-en-scène. A hesitação diz muito mais que o confronto, e os infortúnios que surgem de modo súbito injetam mais adrenalina que os premeditados. Dessa forma, os revolucionários do grupo French 75 são pintados num espaço cinzento entre o ideal e o desespero, retratados como figuras que ainda tentam se encontrar entre o sonho e a impotência. Eles invadem centros de detenção, explodem sedes políticas e se dispersam em meio à poeira dos escombros, mas alguns parecem lutar mais pela adrenalina ou para se manter em relevância do que contra o Estado em si. Por isso, o diretor filma a revolução numa constante ambiguidade entre a farsa e a tragédia.
Contudo, por mais que os mocinhos tenham, sim, atitudes contraditórias, não há dúvidas sobre qual lado do presente político norte-americano é o mais ironizado pelo filme. O coronel Steven J. Lockjaw, interpretado com uma frieza assustadora por Sean Penn, é o símbolo escancarado do supremacismo branco institucionalizado, com o ator demonstrando um domínio ímpar da postura e dos tiques de seu personagem. É justo dizer que ele desaparece dentro do papel, e mesmo quando surge em cenas que demandam níveis maiores de exagero interpretativo, nunca parece estar atuando — e talvez esse seja o melhor elogio possível a um ator. É sintomático que os dois filmes mais elogiados do ano, Uma Batalha Após a Outra e Pecadores, tenham supremacistas brancos como seus maiores antagonistas. Não creio que seja uma mera coincidência temática, mas sim um indício de que os Estados Unidos contemporâneos começam a encarar o próprio reflexo: o de uma nação que, por séculos, alimentou um monstro agora impossível de esconder.
Outro grande ponto de destaque aqui é a cinematografia de Michael Bauman, que explora o formato VistaVision para conferir um oportuno anacronismo estético ao longa e faz uso frequente de mudanças abruptas de foco, evocando o cinema político dos anos 1970 como forma de homenagem e herança de seus símbolos. Os movimentos de câmera reforçam essa crise do olhar, enquanto a montagem nega a própria invisibilidade com o uso de cortes que interrompem ideias em construção e, por vezes, desafiam a continuidade. Todas essas instabilidades na linguagem traduzem o caos e as incertezas vivenciados pelos personagens, com a trilha musical de Jonny Greenwood atestando essa urgência permanente através de composições que conferem uma pulsação nervosa às cenas — em especial, repare em como a tecla sol de um piano é pressionada de modo obsessivo, buscando remeter ao tique-taque de uma bomba-relógio e reforçar a ideia de que o tempo é sempre crítico quando o mundo parece prestes a explodir.
No fim, Uma Batalha Após a Outra se desenrola num equilíbrio instável entre a persistência e a exaustão, como se seus personagens soubessem que nunca haverá uma vitória definitiva para suas lutas. Por isso mesmo, o título é tão literal, expondo a vida como um campo de batalhas sucessivas, onde o simples ato de se manter fiel a uma causa já se torna um triunfo em si. Ao contrário de muitos filmes politizados, Paul Thomas Anderson não tenta oferecer conselhos nem soluções prontas aos dilemas expostos, apenas um espelho que reflete uma humanidade errante e incapaz de viver em paz consigo mesma. Nesse equilíbrio entre fracassos e persistências, cada deslize dos protagonistas se torna oportunidade para sequências memoráveis, cuja tensão transcende qualquer explicação narrativa, e mostram como a grandeza da obra está na precisão com que o diretor orquestra os sons e imagens em movimento para transformar pequenas ações em momentos de pura intensidade cinematográfica.